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CONTOS MEUS





Num dia de marés revoltas, um ovo de peixe foi parar à poça de uma rocha onde se acomodou mesmo ao lado de um ovo de gaivota. Aqueciam-se ao sol juntos que lhes serviu de mãe, até que chegou o dia em que sairam para o mundo. A primeira coisa que a gaivota azul viu deslumbrada, foi a cabeça curiosa do peixinho colorido e pensou para si mesma, que ele era a coisa mais linda que já tinha visto; por sua vez, o peixinho colorido assim que sentiu pela primeira vez a suavidade da água nas suas escamas, olhou para cima e ainda ofuscado com a luminosidade tremelicante a reflectir na poça de água, viu a cabeça da gaivota azul a olhar para si. Imediatamente se firmou em cada um deles, aquele sentimento profundo e inerrante, que surge entre dois seres que chegam juntos a um mundo desconhecido, belo e arrebatador. A gaivota pela primeira vez abriu o bico, não para comer, mas para perguntar ao peixinho colorido:

_ Como foste aí parar?

Ao que o peixinho colorido respondeu:

_ Como assim, “como foste aí parar”? Estás a assustar-me e ainda agora aqui cheguei!

Mas a gaivota insistiu:

_ Então não nasceste também de um ovo? Porque é que estás mergulhado nessa poça de água? Rebolaste para aí?

O peixinho colorido ficou mais tranquilo e como era muito esperto, firmou-se nas suas pequenas barbatanas, esticou as guelras e disse:

_ A minha boca respira água e a tua boca respira ar, as minhas escamas deslizam na água mas as tuas escamas deslizam no ar, percebeste agora?

A gaivota azul ficou impressionada com a sabedoria do peixinho colorido e ficou toda convencida de que tinha escamas coloridas tão bonitas como as dele.

_Queres dizer que eu posso também mergulhar nessa poça como tu? - perguntou esperançosa.

_ Claro que podes, chega-te para cá! - afirmou ele.


Assim os primeiros dias de vida da gaivota azul, foram passados dentro da poça de água junto ao peixinho colorido. O sol aquecia-lhe as penas e ela nunca sentiu frio.
Chegou o dia em que ela cresceu tanto que já não cabia dentro da poça e ficou com medo de pisar o peixinho, pois já tinha reparado numas unhas que cresciam na extremidade das suas patas e que colocadas ao lado das barbatanas do peixinho tornavam-se ameaçadoras.
O peixinho colorido também já tinha notado que alguma coisa errada estava a acontecer com ela, para além do crescimento das unhas ameaçadoras, as barbatanas da gaivota amiga também tinham crescido muito, de tal ordem que quando ela as sacudia ao sol ele ficava com medo de ficar sem água na poça. Mas o sentimento que os unia era tão forte que não se imaginavam a viverem longe um do outro e noutra poça mais larga, pois nunca se tinham aventurado para fora daquela.
A sofrer dos primeiros terrores ansiosos, a gaivota azul pensou que já não iria poder permanecer por muito mais tempo dentro da poça de água, pois o seu corpo já estava mais fora dela do que dentro. A sofrer dos primeiros terrores ansiosos também, o peixinho colorido assistia ao crescimento desmesurado da gaivota azul e nem mesmo a sua esperteza arranjava uma solução para a fazer parar.
O dia em que a gaivota azul ficou totalmente fora da poça de água, foi um dia de rendição e de mudança. Já não conseguiam mais sustentar as posições incómodas, as dificuldades, a falta de espaço e também as resmunguices que as acompanhavam.
A gaivota olhou pela primeira vez para o céu azul e percebeu que algo a distinguia do peixinho colorido. Percebeu que não tinham sido os ovos a uni-los, nem a poça de água em que cresceram juntos mas também não sabia definir o que era.
O peixinho colorido assistia desgostoso a tudo isto, ele sabia que não podia sair da poça de água, enquanto que a gaivota azul já estava fora dela. Essa era a razão do seu desgosto, porque ela poderia ir agora, aonde ele nunca poderia acompanhá-la. Também já tinha percebido que afinal as escamas dela eram penas e as barbatanas eram asas, e que grandes que eram. Abateu-se sobre ele um peso estranho, um receio estrangulador de ficar só naquela poça e de que ela corresse perigo naquela vastidão de céu. A gaivota azul firmou-se nas suas patas e olhou para baixo e viu estupefacta a sua imagem:

_ Olha... tenho a cabeça toda azul!



Era a primeira vez que tinha um pensamento sem ser em conjunto com o peixinho colorido, um pensamento que era só seu e não dos dois, um pensamento vadio fugido da poça de água e isso trouxe-lhe uma confiança nova, uma vertigem impetuosa, de tal maneira que ficou zonza e caiu de patas para o ar. Ficou-se por ali a olhar para o céu sem saber porquê, muda e sem responder aos chamados do peixinho colorido, que assistiu a tudo. Pela primeira vez esqueceu-se dele.
Quando voltou a olhar para o peixinho colorido dentro da poça de água, ficou alarmada por pensar que já não conseguiria voltar para lá, parecia-lhe pequena e atrofiada em comparação com a vastidão do céu. Abriu as asas lentamente, sacudiu-as para as secar ao sol e pensou que era urgente a vontade que tinha de lhes dar uso.

ERA UMA VEZ UMA GAIVOTA AZUL

No dia seguinte, a gaivota azul avistou um bando de asas esfuziante, lá longe, onde o seu olhar se desfocava e decidiu valentemente dirigir-se para lá. Há medida que se aproximava, reparou que eram todas muito semelhantes a ela mas eram cinzentas, brancas ou malhadas de cinzento e branco e ficou embasbacada com tal descoberta.
Uma delas dirigiu-lhe a palavra:

_ O que é que tu queres daqui, ó cabeça azul? - disse uma jovem gaivota de cabeça branca desafiadora.

A gaivota azul nem sabia o que fazer, pois nunca tinha lidado com a agressividade ou com o sarcasmo. Ela sabia o que era a beleza e só agora começava a experimentar a liberdade mas estava a aprender rápido que a liberdade nem sempre é acompanhada pela beleza e tem o seu custo; não podia deixar de ver que o lindo peixinho colorido tinha ficado para trás aprisionado com a sua beleza na poça de água e que a sua própria liberdade tinha ido ao encontro de algo desagradável e ameaçador.
Todas as outras levantaram as suas cabeças do turbilhão de asas e gritos ruidosos e a gaivota azul amedrontou-se; o medo subiu-lhe arrepiante pela espinha e travou nas tripas, pela primeira vez pensou que podia morrer. Mas que liberdade era aquela que a fazia pensar na sua morte? Não esteve até àquele momento protegida na prisão da sua poça na companhia do lindo peixinho colorido? Não tinham sido belos os tempos desde o momento em que souberam que era chegado o tempo de sair das respectivas cascas de ovos? Como é que agora, bêbeda com tanta liberdade, pensa que pode morrer, às asas de tão grosseiros semelhantes?
Rodearam-na, riram-se dela, deram-lhe umas bicadas maldosas e deixaram-na quase desfalecida de susto, para voltarem aos restos de uma cabeça de peixe esfarelada, às bicadas umas às outras, más, vorazes e violentas.

A outra apercebeu-se do cheiro do medo que a gaivota azul exalava e mais compassiva perguntou-lhe:

_ De onde saíste tu, com uma cor dessas?

Na sua inocência, a gaivota azul, contou-lhe que quando deixou o sossego do seu ovo, deu de caras com um lindo peixinho colorido, contou o que o esperto do peixinho colorido lhe tinha ensinado: como a boca dele respirava água e a dela respirava ar e que as escamas dele deslizavam na água enquanto que as dela deslizavam no ar.
Nesse preciso momento foi interrompida pelo riso escarninho da gaivota de cabeça branca e peito alvo:

_ Mas desde quando é que tu tens escamas, ó tola? Uma gaivota tem penas, asas e voa até ao horizonte.

Atordoada com tamanha revelação, a gaivota azul perguntou hesitante:

_ Eu sou uma gaivota? E o que é o horizonte?

A outra fixou o olhar nela, para ver se havia sinais de chacota mas nada viu, a não ser genuína surpresa.

_ Claro que és uma gaivota, só não sei como é que ficaste azul, pois como podes constatar todas nós somos brancas, cinzentas ou salpicadas de cinzento e branco.

Se calhar fiquei azul por passar tanto tempo dentro da poça de água” - pensou alto a gaivota azul, sem notar que a outra ficava cada vez mais curiosa.

_ Fala-me mais sobre o peixe colorido teu amigo, onde é que fica essa tal poça de que tanto falas? - perguntou a outra, semicerrando os olhos, que mudaram de cor ao imaginar-se a degustar o tal peixinho.

A gaivota azul calou-se a tempo, porque havia algo no tom de voz da outra que lhe frisou as penas do pescoço. Mudou de assunto e voltou a perguntar:

_ O que é o horizonte?

_ Olha tolinha, vês aquele risco lá ao fundo entre o céu e o mar? Pois é lá que mora o horizonte. Só o vês de longe, quanto mais te aproximas dele mais longe ele te parece. Nunca tentes alcançá-lo pois só irás cansar-te e perder-te no mar alto que é caprichoso e perigoso.

_ Mas tu não disseste que uma gaivota podia voar até ao horizonte?

_ Isso era eu a meter-me contigo, nunca pensei que fosses tão lerda.

A gaivota azul ficou ofendida. Nunca ninguém tinha sido malcriada com ela e tão cruelmente directa.

_ Junta-te a nós e pode ser que aprendas umas coisas, a safares-te nesta vida, a evitares os perigos desnecessários - disse a outra convidativa.

Mas a gaivota azul só pensava em como poderia livrar-se de tanto calculismo e maldade, sem levantar suspeitas e sem ser seguida. Pela primeira vez estava a ser engenhosa e dissimulada e quando concordou com a outra percebeu também que estava a mentir, só não sabia se tudo isso era bom ou mau, certo ou errado. Decidiu seguir o seu instinto por causa das confusões. Esperou que chegasse a noite e resistiu estoicamente à vontade de recolher uma pata dorminhoca. Tinha na mente a ideia de fugir dali e levar com ela o peixinho colorido para longe daquele bando mal encarado.




ERA UMA VEZ UM PEIXINHO COLORIDO

Estava só! Pela primeira vez o peixinho colorido sentiu a tristeza e o poder avassalador de se sentir só no mundo. Pela primeira vez sentiu-se aprisionado na sua poça de água e nem os maravilhosos efeitos de luz a bater nela, lhe animou os sentidos. Soube que tinha sido abandonado quando percebeu que a gaivota azul se tinha esquecido dele; quando a viu a secar as asas ao sol, quando embasbacada olhou para o céu como se o visse pela primeira vez e quando ela olhou para si, de cima para baixo e percebeu as diferenças. Nesse momento quase sufocou quando as guelras se descontrolaram. Foi tudo muito rápido e ela se foi sem ao menos dizer para onde ia, atrás da curiosidade que ele não pôde satisfazer mesmo com toda a sua esperteza. Tentou pular para fora da poça, várias vezes, só para a ver mais uma vez mas não tinha impulso suficiente, nem força na cauda que era bela mas ineficiente para esses esforços.
O tempo foi passando e o peixinho colorido nadava para cá e para lá num esforço para se cansar para não morrer de inveja, quando uma vaga mais larga bateu na rocha com um estrondo atordoante, indo cair na poça de água arrastando o peixinho colorido consigo, quando veloz voltou para o mar. Ele não soube logo o que estava a acontecer, nem percebeu que estava fora da segurança da poça de água, só ganhava velocidade na corrente da maré e gostou do que sentia. Deixou-se ir e quando deu por si estava rodeado de tanta beleza, tanta variedade de cores e formas que pela primeira vez sentiu-se feio. 



Olhou para cima e viu um grupo de bailado, leve e ondulante em sincronia perfeita, a deslizar pelo meio das algas. Pensou que deveria ser maravilhoso pertencer a uma família tão artística como aquela, todos juntos, todos unidos num só propósito. E pensou na gaivota azul, a única família que ele conheceu.
Sentiu algo a roçar por ele e voltou-se rápido para dar de caras com a mais bela criatura com guelras que já tinha visto. Sentiu-se pela primeira vez inferiorizado com a beleza dela, com o colorido da sua cauda e com a fluidez das suas barbatanas. Como poderia haver quem fosse mais belo do que ele? E percebeu que na poça de água era belo mas ali, era apenas mais um. E ficou abatido. Tinha estado convencido de que a sua beleza seria suficiente para preencher a sua vida e a da gaivota azul, mas estava enganado. A liberdade também tinha a sua própria beleza e isso estava ele a verificar na sua solidão. Ficou desalentado ao ponto de parar de bater as barbatanas e de fechar as guelras, até que levou um encontrão que o trouxe de volta:

_ Acorda, à minha frente não vais parar de nadar, ouviste? - disse a mais bela criatura que ele tinha visto.

_ Não parei de nadar...estava aturdido com a tua beleza!

_ Deixa-te disso, a beleza aqui pode ser letal, o colorido é chamativo e pode tornar-se uma séria maldição. Atrai predadores e nunca mas nunca estamos sossegados.

O peixinho colorido nunca tinha ouvido falar de maldições e não sabia o que eram predadores. Não conseguia desviar o olhar dela. Se de facto essas coisas são tão más e perigosas, como é que ela tem conseguido escapar-lhes?!
Para ali ficou a abanar-se sem saber para onde ir. A criatura mais bela que ele tinha visto, olhou-o intrigada e por fim lá lhe disse:

_ Vens? Olha, não deves ficar no meio do recife a abanares-te dessa forma tão apetitosa. De onde é que vens para estares tão despreocupado?

_ Venho de uma poça de água! Disse ele aliviado e todo sorrisos.

_ Poça de água? Como pode haver uma poça de água no mar?

_ A poça de água estava numa cavidade de uma rocha...em terra.

_ Olha, deves estar a gozar-me porque nunca soube de um peixe que pudesse vir de terra. Por cá temos de ter cuidado para que não nos arrastem para lá, mas nunca ouvi falar do contrário.

_ Pois comigo foi o que aconteceu. Nasci numa poça de água, ao lado de um ovo de gaivota azul e crescemos juntos. Quando ela não coube mais na poça teve de a abandonar, e o pior é que me abandonou também.

_ Nunca ouvi tal coisa! - afirmou a criatura mais bela que ele tinha visto – Uma gaivota, mesmo que seja azul, é um predador.

Outra vez aquela palavra e ele sem saber o seu significado. E a mais bela criatura que ele já tinha visto continuou a falar:

_ E uma gaivota é predadora porque alimenta-se de peixes e está sempre a tentar comer-nos.

_ Isso não é verdade! - disse ele peremptório – A minha gaivota azul nunca me comeu como é lógico e fomos sempre amigos.

_ Ah sim? Então fica aí a boiar e vais ver se não te tornas o almoço de uma delas. Vem comigo, vou ensinar-te o básico das leis do recife! Maldição...evita passares tão rente aos buracos, as moreias por serem feias, vivem enfiadas neles.

_ O que é uma maldição? - perguntou curioso.

_ Uma maldição é quando uma coisa má te acontece porque outro a desejou, é um desastre provocado, uma tragédia inevitável.

Pela primeira vez o peixinho colorido sentiu-se amaldiçoado por a gaivota azul o ter abandonado, por esse acontecimento ter sido desastroso para a sua vida tranquila e feliz na poça de água e por não ter sabido evitar que ela se fosse embora.
E com estes pensamentos a bombearem-lhe o sangue na guelra, deixou-se conduzir pela criatura mais linda que ele já viu, até um local seguro.




ERA UMA VEZ UMA GAIVOTA AZUL

Finalmente a gaivota azul pôde parar de fingir que estava adormecida, já tinha o pescoço dorido e as asas dormentes. Uma leve dor de cabeça devido à ansiedade, insinuava-se pela noite escura sem luar; ainda bem que assim era, a escuridão dava-lhe invisibilidade, só teria de se preocupar de não meter a pata na poça e não pisar o peixinho colorido à chegada. Fugiu com todas as suas ganas e nem olhou para trás, tal era a vontade de avançar em frente. Só pensava em chegar à sua poça de água o mais rapidamente possível. Ai se tivesse com quem aprender a voar, mas ainda não se tinha arriscado sozinha a testar as suas asas. E se não funcionassem? E se não conseguisse aterrar? E se caísse no mar? Mesmo na companhia do peixinho colorido, não tinha aprendido a nadar. Começou a perceber que para se ser livre não bastava sair de uma poça, e para se ser independente não é preciso abandonar um amigo, a única família que conheceu. A liberdade estava a começar a pesar-lhe com tanta responsabilidade, obrigação e decisão. Só agora se lembrava, de que se tinha esquecido do peixinho colorido, durante as horas de entusiasmo e isso deixou-lhe amargos de bico. Estava cansada e triste e isso também foi uma novidade, pois enquanto rebolava feliz na poça de água com o peixinho colorido a fazer-lhe cócegas nas penas, nunca houve tempo para sentir essas coisas. Agora o medo do escuro, fê-la esbarrar num gato preto de olhos amarelos que surgiu das trevas como um obstáculo a ultrapassar.




_ Olha, olha se não é um filhote de gaivota perdido na noite! Caíste num balde de tinta azul? Riu-se alegremente o gatão de cauda ondulante.

_ Quem és tu? Perguntou-lhe a gaivota azul

_ Sou aquele que vê melhor de noite do que de dia; sou aquele que rouba ao sono as melhores caçadas; sou o rei do silêncio e das unhas afiadas - e continuou a rir-se - Sou curioso e pergunto: o que fazes acordada a esta hora? E aproximou os seus grandes olhos amarelos da pobre gaivota assustada.

_ Naadaaa! - gaguejou.

Mesmo com tão pouco tempo de liberdade, suspeitava que ele estava a barrar-lhe a passagem.

_ O que te traz ao meu território? - insistiu enquanto lambia uma pata com demasiada atenção.

_ Naadaaa! - gaguejou novamente a gaivota azul.

Ela nem sabia que havia territórios e só agora, com as saudades que tinha do peixinho colorido e da sua poça de água, é que começava a entender essas necessidades de chamar alguma coisa de “seu”.

O gatão preto de olhos grandes amarelos e cauda ondulante, não quis brigar, porque afinal uma gaivota enfurecida não era coisa para brincadeiras e todas as vezes que tentou meter-se com elas ficou com a pelagem desarrumada e enervado, portanto pensou duas vezes antes de se meter em sarilhos com mais esta, mesmo parecendo-lhe inexperiente e de cor estranha.

_ Não te vou fazer mal – adiantou, para não perder a fleuma e a vantagem de a ter surpreendido – podes ficar tranquila que não te faço mal, conta-me só de onde vens e para onde vais.

Mas a gaivota azul, tinha aprendido a lição com as suas semelhantes de cabeças brancas, cinzentas ou malhadas de cinzento e branco de ser tardia para falar. Também não sabia se os gatos comiam peixes coloridos e decidiu fechar o bico. Corajosamente disse-lhe:

_ Venho do escuro da noite e caminho para o amanhecer do dia!

_ Ora, ora, encontrei uma poeta! - disse divertido o gatão preto de olhos grandes amarelos - Eu também sei miar com harmonia e tenho ritmo na minha cauda, queres ver?

E o gatão preto de grandes olhos amarelos, cheio de alegria, desatou a pular e a miar perante o espanto da gaivota, que se descontraiu e desatou a rir também.

_ Não sabia que os gatos podiam ser tão alegres. Não tens medo do escuro e de estares sozinho? Perguntou a gaivota azul?

Ainda a dançarinhar o gatão preto de grandes olhos amarelos dizia:

_ Não vês que estou vestido de noite? E que o escuro é a minha protecção? - e rodopiava- As minhas garras são afiadas e eu não estou sozinho, estou contigo.

_ Mas eu tenho de me ir embora, tenho onde ir e não posso ficar!

_ Eu acompanho-te até ao fim do meu território, assim podemos conversar.

A gaivota azul, hesitou, ficou insegura por não saber qual seria a extensão do território do gatão preto de olhos grandes amarelos. E se o conduzisse até ao peixinho colorido?
A liberdade estava a ensiná-la a ser cautelosa. Mas por fim aquiesceu e lado a lado iniciaram a marcha. O gatão preto de olhos grandes amarelos ia todo contente de cauda levantada a apontar para as estrelas e a gaivota também não pôde deixar de pensar que a companhia de um gato tão conhecedor da noite, tranquilizava os seus temores.
A noite começou a esvair-se num amarelado que despontava por cima do mar.
A gaivota azul virou-se para o gatão preto de olhos grandes amarelos e disse-lhe:

_ Sabes gatão, o que é aquela linha amarela que se vê lá ao fundo?

_ Não faço ideia gaivota azul, eu durante o dia vejo tudo desfocado para poder ver bem à noite; de dia os meus olhos ficam pequeninos e sonolentos e só me foco quando passa perto do meu nariz uma lagartixa ou um melro, caso contrário não me dou ao trabalho.

_ É a linha do horizonte! - disse de rompante a gaivota azul, contente por poder demonstrar os seus conhecimentos.

_ O que é isso de “horizonte”? É alguma coisa que se coma?

_ Parece que é um sítio onde não se pode ir e que nunca está perto.

_ Então para que serve esse tal de horizonte? Não se come, não se pode ir e nunca está perto, serve para quê?

_ Olha, se queres que te diga, também não sei bem – disse a gaivota azul pensativa –
mas para mim serve como um empurrão para eu querer voar.

_ Olha gaivota azul, quando eu for dormir vou querer sonhar com o teu horizonte, se não serve para grande coisa, ao menos que me faça sonhar.

_ E achas pouco? Para mim que já não prego olho há uns dias, coisa grande é essa de sonhar com o horizonte.

O gatão preto de olhos grandes amarelos parou de repente, cheirou o ar várias vezes e disse:

_ Termina aqui o meu território! Daqui em diante segues sem mim gaivota azul. Foste uma boa companhia. Sempre que passares por aqui, procura-me. Mesmo que eu esteja a dormitar ao sol, podes acordar-me. Se encontrares outro horizonte, não deixes de me avisar.

E o gatão preto de olhos grande amarelos, esfregou o seu focinho amigavelmente na cabeça da gaivota azul, deu um ron-ron de despedida e voltou para trás. A gaivota azul ficou parada na linha invisível que limita o território do gatão preto, a vê-lo ondular de cauda levantada e passos indolentes, até se tornar um ponto preto no horizonte do seu olhar, e pensou para si própria: “Afinal há mesmo outros horizontes”! E contente com mais esta descoberta pensou que já tinha algo novo, para na próxima lhe contar.
Quem diria que teria um gato como amigo. O mais estranho é que, as que eram semelhantes a ela receberam-na à bicada, mas o gatão preto de olhos amarelos e cauda ondulante que facilmente a faria em farrapos, dançou para ela, fê-la rir-se, afastou terrores nocturnos e disse que iria sonhar com o horizonte que ela lhe mostrou, mesmo sem o conseguir ver bem. Inacreditável!
A pensar nestes acontecimentos emocionantes, avistou a poça de água esverdeada, a tremelicar cheia de luz. O coraçãozinho da gaivota azul parecia que ia rebentar, e nem os estrondos do mar a bater nas rochas, conseguiram silenciar o tambor que lhe batia no peito. Ainda viu a onda a elevar-se num frescor espumoso para vir a cair vigorosa e certeira na sua poça amada; para depois a ver recuar para o mar, sôfrega e ruidosa. Caiu soluçante no buraco da sua infância, agora vazio e desabitado. Tudo tinha desaparecido. O mar tinha arrastado consigo o peixinho colorido, as suas algas preferidas e o reencontro tão desejado. Foi como que um tsunami, que ao se recolher, deixa visíveis recordações partidas e famílias destroçadas.

ERA UMA VEZ UM PEIXINHO COLORIDO

O peixinho colorido começou a perceber que a beleza, além de poder tornar-se perigosa era também fugaz e competitiva. Ela estimulou de tal ordem os seus sentidos que nada mais se sobrepunha à ideia de que o colorido das suas escamas era tão belo que só poderiam olhar para ele com admiração. Era essa admiração que ele sempre esperou da gaivota azul, de tal maneira que nunca supôs que ela fosse bela também. Mas agora, rodeado de tanta beleza no recife a pontos de se achar insignificante, caiu em si mesmo e arrependeu-se. Aprendeu também que a coragem podia ser bela; a alegria era bela; a amizade era bela; e seres não tão belos como ele continham ainda assim uma beleza que muitas vezes ele não soube apreciar. Também estava a perceber que em questões de sobrevivência a beleza não contava para nada, podia até ser bastante prejudicial por dar tanto nas vistas. E ainda, chegou à conclusão que a beleza provocava habituação, e isso porque já se estava a habituar à beleza das escamas da criatura mais linda que ele já tinha visto e a perceber que o que se destacava nela, a cada dia que passava, era uma beleza que os seus olhos não podiam tocar.
Reconheceu que ela preocupou-se com o seu bem estar, mostrou-lhe todos os recantos seguros do recife, ensinou-lhe a diferenciar perigos: os perigos dos peixes de boca grande, os perigos dos anzóis, os perigos das redes, os perigos da armadilhas dos pescadores, os perigos dos buracos escuros e os perigos daqueles que são venenosos. Também ensinou-lhe a fazer bolhas de ar com arco-íris, a nadar contra a corrente, a camuflar-se nas anemonas e a fingir-se de morto e tudo isto sem pedir nada em troca, melhor do que ela só a gaivota azul de quem tinha muitas saudades. Sim, a amizade podia ser bela, e ele só teve pena de não saber disso mais cedo. Esperava com toda a força das suas barbatanas, que a gaivota azul lhe perdoasse a sua vaidade.

ERA UMA VEZ UMA GAIVOTA AZUL

A gaivota azul levantou-se a custo da poça seca da sua infância. Não fazia ideia dos remorsos do peixinho colorido, visto que não sabia que ele tinha sido vaidoso. Tinha sempre achado natural ele ser mais belo do que ela, visto que ele era muito colorido e ela tinha uma só cor mas nunca se sentiu mal com isso. Ele tinha tantas qualidades que ela considerava mais importantes do que a beleza: era brincalhão, muito esperto e muito meigo, só essas três eram suficientes para abafarem o resto.
Pôs-se de pé olhou para o horizonte e suspirou: “Mostrei o horizonte ao gatão preto de olhos amarelos com quem tive apenas umas horas mas não sou capaz de o mostrar ao peixinho colorido com quem vivi desde que nasci”. E com isto, abriu as asas, tomou balanço e ficou suspensa no ar. Quanto mais subia no ar, mais pequeno ficava o buraco da antiga poça de água, e voou, deixando para trás o trovejar do mar ao bater nas rochas.
A gaivota azul aprendeu que a sua liberdade teve um custo e que essa liberdade podia ser efémera. Que a liberdade dela não era igual à do peixinho colorido; às das suas semelhantes de cabeças brancas, cinzentas ou malhadas de branco e cinzento e à do gatão preto de olhos grandes amarelos e cauda ondulante. Podia-se fazer o que se quisesse com ela, até perdê-la, morrer por ela, ou esquecê-la. Podia-se ser livre sem se voar e dentro de uma poça de água, muito mais do que a caminho do horizonte que nunca se acha. E ganhá-la à custa da perca de um amigo, não a tornava apreciada. A liberdade tornou-se um mistério para a gaivota azul, pois não sabia bem o que fazer com ela.
Depois de percorrer praias e falésias nunca dantes voados por si, voltou ao ponto de partida e decidiu pousar e percorrer à pata a distância que faltava até à antiga poça de água que voltou a tremelicar à luz do sol. Aproximou-se lentamente e uma vez mais viu a sua cabeça azul reflectida no espelho de água. Inclinou lateralmente a cabeça para focar melhor o fundo da poça e então viu, claramente, um ovo pequenino branco e brilhante, entre as pequenas algas que se estavam a formar ao seu redor. Um ovo pequenino de peixinho colorido, sozinho a aquecer-se ao sol. Mesmo ao lado da poça, no meio de um círculo de penas fofinhas, depositou o seu ovo, cuidadosamente, de modo que, quando os dois eclodissem, não deixassem de dar de caras um com o outro.
Estava esperançosa de que a sua cria fosse azul como ela.



                                                                  
                                                        FIM


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A HISTÓRIA DA NUVENZINHA





Era uma vez uma nuvem pequenina perdida no céu azul. De repente materializou-se tanto quanto é possível a uma nuvem e apareceu à minha frente, tímida mas corajosa. O seu centro muito branquinho derramava-se para os seus extremos como se fossem dedos mas sem anéis. Ficou parada por cima de mim como se estivesse a ver-se num espelho. Fiquei com receio de que se esfumasse e desaparecesse para sempre mal eu desviasse os meus olhos dela. Não sei para onde elas vão quando isso acontece porque nunca as vi voltarem iguais, não sei se se esfumam numa viagem cósmica ou se morrem e existem cemitérios de nuvens no céu; o que eu sei é que esta continuava por cima de mim, perdida no azul do céu, só e encantadora. Quando eu chorava, ela chovia e quando eu me irritava ela ficava cinzenta mas nunca aumentava nem diminuía de tamanho, sinceramente, até comecei a pensar que ela era uma projecção gasosa que reflectia o meu temperamento conforme as minhas emoções, sem nunca eu saber ao certo como apareceu e quando é que se irá embora, tal e qual como quando estou alegre e não sei quando é que termina o sorriso e começa o riso, essas fronteiras emocionais são sempre um mistério para mim, até porque muitas vezes é o riso que termina num sorriso, pelo menos comigo é assim, não existe uma ordem estipulada para essas manifestações. A realidade é que percebi que a nuvenzinha tinha o céu todo para passear, todo para se aventurar e no entanto não saia do mesmo lugar, o que eu achei muito estranho. Quase sempre vejo as nuvens atarefadas a correrem para o mar para se encherem de água, para logo logo virem para terra despejar os seus depósitos atestados de água que misteriosamente passa de salgada a doce, de imbebível a bebível, de boa para peixes a boa para flores. Mas esta nuvenzinha não me parecia nada atarefada, aliás nisso ela estava como eu, cheia de um monte de nada, parada no céu azul como eu no ocre da terra, suspensa só eu sei como ela o consegue, sem estar presa a arames, cabos, cordas ou fios, numa teia invisível até para as gotas do orvalho. Os dias começam a aquecer e eu não sei ainda como ela se manterá tão branquinha sem se queimar com os raios intensos do sol de Verão, tenho receio que nessa altura também ela se aventure lá para as bandas do mar e se afaste da costa levada por algum vento matreiro que a empurre para longe de mim. Sem ela no céu, fico com as brisas que vêm do mar e os ventos que para lá vão desnorteados, que não são bons substitutos nem fazem amizades, porque andam sempre a correr de um lado para o outro sem tempo para paragens, porque se as fizerem morrem. Ninguém gosta de um vento que sopre muito tempo no mesmo lugar e ele também nunca tem tempo a perder. A função dele é a de empurrar nuvens, de fazer avançar tempestades, de lançar relâmpagos, de fazer rodopiar folhas mortas, de assobiar nas que estão vivas e de me cortar a visão quando emaranha os meus cabelos à volta da cara. 
Nada disto tem a ver com a nuvenzinha que tem a sua própria história. Apareceu num dia em que estava farta de estar dispersa e decidiu corajosamente ocupar um lugar no céu, um espaço só seu mesmo pequenino. Passou a ter uma forma e uma cor e assim já podia ser visível a todos, calhou ser eu a primeira a esticar-lhe a mão num aceno amigável. Fiquei algumas horas calada a olhar para ela porque nunca tinha ouvido alguém a falar com nuvens, só a praguejarem contra elas por causa do negrume que adivinha chuva ou porque estão a encobrir o sol em dias de pic-nics, mas a falarem, mesmo a falar como fazemos uns com os outros ou mesmo como fazemos com os nossos animais, nunca ouvi. Mas ali estava ela, parada a olhar para mim, insistente à espera de que algo acontecesse. Da minha parte nada acontecia, fiquei a olhar para ela quase sem a ver, perdida nos meus pensamentos, quando de repente ouvi uma voz que chegou até mim com um ligeiro eco, que dizia:

_ De onde surgiste?

Até me assustei, porque estava precisamente a pensar no aparecimento súbito daquela nuvenzinha tão pequenina num céu tão limpo e azul. Será que os meus pensamentos de repente ganharam vida e voz própria, pensei eu na minha mente, como se ela estivesse agora isolada deles.

_ De onde surgiste? - disse a voz insistente.

_Isso pergunto-te eu nuvenzinha, estava aqui a olhar para o céu e de repente tu apareces-te.

_ Posso dizer-te o mesmo, estava daqui a olhar para baixo e de repente apareces-te tu.

_Aí de cima não consegues ver tudo o que se passa aqui em baixo?

_Estive bastante ocupada a tornar-me visível portanto não reparei de onde surgiste.

_E eu tenho estado perdida nos meus pensamentos de modo que não reparei como te tornaste visível, do que tenho muita pena. - disse-lhe eu sincera - A verdade é que tenho andado muito ocupada comigo própria, para reparar como é que as nuvens aparecem e desaparecem.

_ Podes acreditar – disse a nuvenzinha – que não foi nada fácil tornar-me visível, levou algum tempo a reunir todas as condições para eu ser o que agora podes ver.

_ Calculo que sim – disse eu com um suspiro profundo – não é nada fácil viver na visibilidade, até porque nessa condição não conseguimos controlar o que os outros veem em nós, mesmo que nos esforcemos tanto para que vejam o nosso melhor.

A nuvenzinha percebeu alguma tristeza na minha voz.

_ Como podes ver o céu está limpo e só eu apareci. Já viste outras nuvens para além de mim? - perguntou num tom coquete.

_Já vi sim, mas nenhuma como tu! Nunca tinha falado com uma nuvem, nem sabia que se podia falar com elas, se calhar só tenho olhado para nuvens mudas que vivem em castelos no ar.

_Se calhar esses castelos estão dentro da tua cabeça porque eu nunca os vi por cá.

_ Nunca os viste porque não existem!

_Se não existem então porque é que falamos neles? Gostas de falar do que não existe?- perguntou-me ela.

_ Gosto muito! Estou sempre a pensar em coisas que ainda não existem mas que poderão tornar-se visíveis, que se podem materializar. Cuido dessas coisas, como se fossem um jardim que deve ser cuidado, adubado, enfeitado com flores coloridas. 

_ Deve ser por isso que podes falar comigo! – disse a nuvenzinha entusiasmada – Eu também não existia até me tornar visível e ocupar este espaço no céu azul.

_ Talvez minha amiga! O que te posso afirmar pela minha experiência, é que pelo facto de estar sempre a pensar em coisas que ainda não existem, é que me torno tão visível e isso nem sempre é agradável.

_ A sério? - perguntou a nuvenzinha curiosa.

_ A sério! - respondi-lhe com os ombros um pouco encolhidos – 
A maioria das pessoas estão muito atarefadas a classificarem, a rotularem, a processarem, a guardarem coisas que existem e não compreendem nem sabem como devem lidar com as pessoas que, como eu, só pensam em coisas que ainda não existem.

_ E como é que se sabe quem é quem? - perguntou a nuvenzinha toda interessada.

_ Quando vires alguém a olhar demoradamente para o céu é porque está à procura de alguma coisa que ainda não existe. - respondi-lhe eu com toda a certeza.

_ Mas porque é que olha para o céu para procurar o que não existe e não olha para a terra? - perguntou uma vez mais a nuvenzinha curiosa.

_ Não sei bem nuvenzinha, mas o céu é como uma folha de papel; o papel aceita tudo o que imaginas quando olhas para o céu.

_ Olha, estamos aqui as duas a conversar e isso não é imaginado. Sabes... os meus pensamentos são tão voláteis que tenho muita dificuldade em segurá-los. É por isso que tudo o que sou é o que tu vês e não tenho aptidão para mais, nem talento para melhor.

Fiquei embasbacada com tanta franqueza; é que se notava mesmo que a nuvenzinha não estava a ser sonsa. E não conseguir segurar os pensamentos pode ser a principal causa das nuvens se esfumarem tão facilmente, pensei eu.

_ Com as pessoas é diferente – disse-lhe eu - os pensamentos por vezes agarram-se de tal forma a nós, que temos é de ser nós a fugir deles e não o contrário. Quantos pensamentos eu não quis segurar mas sem o conseguir? Milhares deles! É por isso que não acredito naquelas pessoas que dizem que conseguem parar os pensamentos ao meditarem enquanto mastigam sons. Eu então, nem a dormir tenho mão neles, soltam-se no céu da minha mente, tão reais por vezes que acordo assarapantada sem saber se estou a sonhar, se estou acordada.

_ Pois eu nunca dormi e nunca sonhei! - disse-me a nuvenzinha num tom de voz de quem não se importa.

_ Nem mesmo à noite, quando tudo está escuro e só a lua brilha?

_ Nem assim! - continuou a nuvenzinha.

_ Nem mesmo uma pequena sesta?

_ Nem sei do que estás a falar. - respondeu a nuvenzinha toda sorridente.

_ Nem um rápido descanso de olhos? - insisti espantada.

_ Nada! Nem um bocejo sequer! - riu-se a nuvenzinha – Eu não preciso de dormir porque eu não me canso.

_ Deve ser por estares parada aí há tanto tempo!

_ Eu só estou aqui à espera de um ventinho que venha do norte para ele me empurrar para sul.

_ Para que queres ir para sul?

_ Para poder ganhar tamanho e volume. Aqui em cima, o tamanho e o volume são muito apreciados. Já imaginaste um tufão pequenino? Ou um tornado minúsculo? Quem ligaria ao trovão se ele fosse um trovãozinho ou ao relâmpago se ele fosse apenas uma faísca? Aí em baixo o tamanho e o volume não são apreciados?

_ Nem por isso! A maior parte das vezes o tamanho desengonça e o volume engorda, isso quando se tornam visíveis. No nosso interior avolumam-se e aumentam como amor ou com medo, coisas difíceis de entender e explicar. Mas agora já sei para onde vocês vão quando desaparecem...vão para sul!

A nuvenzinha ria-se a bandeiras despregadas e enrolava-se toda divertida.

_ Então não sabias disso? Até um pássaro sabe isso!

_ Dos pássaros eu já sabia, mas de que as nuvens pequeninas desejam ir para sul para ganharem tamanho e volume para serem apreciadas, é uma novidade. Como vou eu distinguir-te das outras nuvens quando voltares cheia de tamanho e volume?

_ Deixa que seja eu a encontrar-te. Prometo que não te prego uma molha.

E acenando um adeus risonho, a nuvenzinha finalmente cumprimentou o vento acabadinho de chegar do norte e rumaram os dois para sul, por cima do mar onde se ganha volume, até chegar a um continente mais quente, onde se ganha tamanho devido ao calor.
Fiquei a vê-la a afastar-se até ser uma pequena mancha no céu, já com uma ponta de saudade a insinuar-se num pensamento.

 
                                                                           *******




UM ENCONTRO NO NEVOEIRO


Em tempos que já lá vão, conheci sem querer é certo, um senhor de nome Eu e cognome “O Ego”. Passeava eu pelo parque, numa manhã fresca e orvalhada quando de súbito caiu um nevoeiro espesso, qual bafo de um continente gelado que em golfadas chegava até mim. Fiquei arrepiada e quase às cegas, acabei por esbarrar num banco de jardim onde estava sentado o senhor Eu de cognome “O Ego”. Atrapalhada, percebi que lhe tinha pisado uns dos pés devido à imprecação dele. Com muitas desculpas, lá me sentei ao seu lado, tentando manter a distância suficiente de modo a que ele não se esfumasse da minha vista, pois tinha chegado à conclusão que não adiantava caminhar pelo parque, tal era o nevoeiro estranho e opaco a rodear tudo e todos.

O senhor Eu de cognome “O Ego”, como vim a saber mais tarde, tinha idade indefinida, coisa que me custava aceitar, pois nos jogos que fazia comigo mesma, quando alguém me despertava a atenção, fosse onde fosse, tentava-lhe sempre adivinhar a idade, a profissão, o hobby e por aí fora. Mas desta vez, com o senhor Eu não me “saía” nada da imaginação e dele não emanavam as pistas necessárias. Foi com verdadeiro espanto que tomei conhecimento de que era um viajante. Nunca me disse de onde vinha, nem para onde ia, simplesmente ali estava, e tive a nítida sensação de que se bastava a si próprio, porque ao começar a contar-me as suas aventuras, era como se estivesse a falar consigo mesmo, como quem organiza pensamentos em voz alta para os tornar mais reais. 

Contou-me que um dia, a meio de uma das suas viagens por um território agreste e de fundos desfiladeiros, conheceu um indivíduo que à beira de um penhasco gritava a plenos pulmões para o ar com as mãos em concha à volta da boca. Curiosa, aproximei-me mais do senhor Eu de cognome “O Ego” para ouvir melhor aquela história. Já me estava a deixar envolver pelas suas palavras.

- E depois? - Insisti.

_O indivíduo – continuou ele – colocou o dedo indicador em frente à cara para me calar qualquer som e esperou com as mãos em concha a rodear as orelhas pelo seu eco, que ressoava pelos desfiladeiros:”Eu quero”, “Eu posso”, “Eu mando”; e sorriu-me todo contente aos pulos mesmo à beirinha do precipício.

_ Ena, que coisa tão estranha!

_ Nem por isso, achei muito natural. Interessante foi o encontro seguinte uns dias mais tarde, ía eu por um caminho estreito de terra batida quando vi um vulto ao longe, assim como se fosse uma miragem, como quando está um dia de grande calor e olhamos para o horizonte ondulante, sabe como é? Aproximei-me, como não podia deixar de ser, porque só havia aquele caminho. A pessoa andava uns passos para a frente e uns passos para trás e nunca saia dali, até que o abordei, dizendo-lhe: Olhe que assim você não vai longe! Ao que ele me respondeu:

_ Quem lhe disse que eu queria ir para longe?

_ Desculpe – retorqui – pensei que fosse um viajante como eu, já que está a meio deste caminho.

_ E sou – respondeu-me – mas a minha viagem só a mim interessa e não tenho prazer em compartilhá-la com alguém.

_ Mas que viagem é essa – insisti - se você anda às voltas e não sai do mesmo lugar?

_ É a minha viagem, a minha visão, o meu objectivo e ninguém tem o direito de interferir – respondeu-me com alguma brusquidão.

Fiquei um pouco estonteado porque no fundo no fundo eu pensava da mesma maneira, nunca tinha era tido a coragem de o dizer a outra pessoa, de uma forma tão firme e aguçada mas fiquei chateado pelo tom e pelo sobrolho altivamente levantado que apontou na minha direcção. E decidi que não queria ficar na companhia de tão desagradável indivíduo e continuei a andar, sem antes ir olhando-o por cima do ombro à medida que ele ía ficando para trás, sempre à espera de um adeus amigável ou de uma corridinha para me alcançar mas nada...nem um esboço de reencontro com outra atitude.

Olhei melhor para o senhor Eu de cognome “O Ego” para perceber se ele estava a divertir-se à minha custa mas reparei que ele falava muito sério, quase sem reparar que eu estava sentada ao seu lado. Começava a perceber porque é que tinha aquele cognome, se afinal o seu ego ficava ferido ao ser confrontado com algo que não partia de si mesmo mas de outro igual a si. Até comecei também a desconfiar se teria havido tais encontros, comecei a pensar se de alguma forma, essa “viagem” não seria uma demonstração da bondade e misericórdia de Deus, pois o pecado tem primeiro de ricochetear na nossa consciência para se apresentar a nós como algo desagradável e indesejável. O problema é que até agora ainda não tinha visto um sinal da sua parte de que tinha recebido e percebido o recado divino, enfim...

_ O que aconteceu depois desse encontro? - perguntei curiosa.

_ Depois disso, tracei o meu destino, estipulei o meu rumo e mantive-me fiel aos meus instintos. Até que cheguei à borda de uma lagoa, uma bela esmeralda líquida. Reparei que havia uma pessoa a nadar mas de uma forma que achei aflitiva, porque nadava para dentro.

_ Como assim “nadava para dentro”, como é isso possível?

_ É que em vez de os gestos dos braços serem feitos de dentro para fora, eram feitos exactamente ao contrário, de fora para dentro, de modo que o fluxo de água ao invés de fluir suavemente impulsionando-o para a frente, era represada dentro do arco dos seus braços, entalada entre as mãos e o resto do corpo...uma aflição, que lhe inundava todos os sentidos.

_ Mas porque é que ele nadava dessa forma particular? Parece-me tão exaustivo e inútil. - afirmei eu.

_ Sim, talvez – disse ele pensativo - mas tenho de concordar que é muito compensador pensarmos primeiro em nós próprios e depois nos outros. Porque haveria eu de ficar desconfortável para outro ficar confortável? Porque é que tendo eu sede, haveria de dar a minha água a outro? Porque ouvirei as lamúrias dos outros se me posso afastar delas? Porque fingirei que me interesso se não me importo nada? Do meu ponto de vista é aflitivo sim ver isso nos outros, mas muito compensador para nós mesmos.

Uma vez mais fiquei surpresa a olhar muda para a figura um pouco indistinta que encontrei nesta manhã de nevoeiro. Não parecia de facto importar-se com a minha presença, nem com as minhas perguntas. Ía desfiando personagens e encontros que se pareciam cada vez mais com ele próprio.

_ Bom - disse eu aclarando a minha voz– A mim parece, que a nossa felicidade depende da dos outros e a dos outros depende da forma como desejamos ser tratados.

Pela primeira vez o senhor Eu de cognome “O Ego” virou-se para mim e olhou-me com toda a atenção.

_Ó menina, troque lá isso por miúdos! Porque é a primeira vez que ouço tal coisa e quero confirmar se ouvi bem.

_ Vejamos: você disse que um dia tinha encontrado uma pessoa que gritava para o ar só para ouvir o seu próprio eco, ou seja, que se amava ouvir a si mesma, não foi?

_Sim foi – respondeu expectante

_ Mas eu penso: de que lhe adianta ouvir-se a si mesmo, se a única coisa que faz é ouvir um eco que se dilui rápidamente no ar? Parece-me que é um desejo tolo e inútil, não lhe parece?

O senhor Eu de cognome “O Ego” ficou calado e a olhar para mim fixamente, com uma expressão na face de total embaraço, como se tivesse sido apanhado desprevenido em algo. Eu continuei:

_ De que serve andar às voltas sem se sair do mesmo lugar, sempre a ver a mesma paisagem, e com o mesmo objectivo numa visão reducionista? Uma vez mais parece-me um tanto tolo e muito entediante. Tal como aquele que nadava para dentro e que pensava assim poder tirar vantagem dos outros mesmo com todo o esforço que faz para a alcançar. Penso que dividir esforços é mais vantajoso e vai-se mais longe, portanto parece-me a mim que é igualmente uma tolice insensata e bastante desvantajosa quando se nada para dentro ao invés de se nadar para fora, além de que é sem dúvida menos emocionante.

Calei-me e fiquei à espera de um comentário da parte do senhor Eu de cognome “O Ego”, que parecia ter levado uma martelada na cabeça.
Pude observar que tinha os cabelos ralos, puxados e repuxados com uma espécie de goma para tentar cobrir a calvície envergonhada, tinha os ombros um pouco descaídos e um casaco de bambazina bastante usado, daqueles que têm uns remendos ovais nos cotovelos a imitar pele. Tinha-se enredado tanto nos seus ecos, nos seus planos, no seu mundo e há tanto tempo, que já se tinha esquecido da vaidade e amarrotado o charme. Agora que o nevoeiro se estava a dissipar, pude vê-lo tal como ele é, o senhor Eu de cognome “O Ego” não passava de um mendigo que não estendia a mão para receber graça e não se ajoelhava por se achar alto. Fiquei cheia de compaixão dele porque tudo o que vi foi alguém fortemente enfraquecido no seu orgulho carente de amor.

Levantei-me do banco, estendi-lhe a mão e perguntei-lhe:

_Quer vir comigo tomar um café? Prometo que lhe conto como é que a partir do perdão você alcança a felicidade; como o seu Eu pode amar o próximo e como o seu Ego é o seu pior inimigo, combinado?
O senhor Eu de cognome “O Ego”, levantou-se de um salto, apertou a minha mão e disse numa voz rouca:


_ Então vamos lá!
   
                                                           FIM






A ASA QUE ROÇOU EM MIM




"O homem é o sonho de uma sombra" - Píncaro

Andava sempre que podia na sombra dele Era uma sombra estreitinha e escura que não parava quieta. Eu tentava pisá-la e quando entrava nela experimentava dizer de um só fôlego: “Ali Babá e os 40 ladrões”, mas nunca me deixou acabar a frase sem que não mudasse de lugar. Fintava-me sempre que a procurava atenta pelo chão esmiuçando todas as ervas daninhas que cresciam no meio das pedras, para a avistar alongada e espalhada numa parede. Agarra-me aos ferros forjados da varanda e num impulso de pulsos colava-me a ela em equilíbrios tremelicantes, espalmada de encontro à parede, dizendo entre dentes: “Ali Babá e os...já se foi...bolas para isto!”

Desmultiplicava-me em pequenas corridas e saltos atrasados à volta dele como uma pulga coxa. Os seus gestos chegavam sempre ao fim, nunca se esmoreciam em dúvidas e nunca me enxotaram; se calhar não se incomodavam comigo porque não me viam. Eu andava por lá a roçar neles mas isso não servia de desculpa para não levarem a bom termo a tarefa que desempenhavam.

Quando me cansava da caça à sombra, acocorava-me por ali e apreciava o dono daqueles gestos tão seguro de si. As mãos eram pequenas e ossudas, fortes e precisas de nós salientes. Os braços, tronco e as pernas eram magros e tudo teria a altura de um arbusto. O meu avô tinha a cabeça em forma de azeitona e cabelos pretos que pareciam engraxados. A face estava sempre séria e concentrada no que fazia. Os seus olhos viam um mundo que eu não via, onde tudo se encaixava no seu devido lugar com perícia e paciência. E o que por si só não se amoldasse, ele construiria uma forma de se fazer obedecer. Era um artista do quotidiano, um artesão da arte. Não havia nada que não soubesse fazer, nada que não pudesse construir, reforçar, envernizar polir, forrar, pintar ou semear.

Não lhe sobrava tempo para reparar em mim mas eu não lhe levava a mal. Uma pessoa tão pequena só poderia mesmo possuir um tempo magrinho. Tempo a mim não me faltava e haveria de arranjar maneira de engordar o dele.

Exactamente ao meio-dia em ponto, a minha avó chamava-o para o almoço. O meu avô só mastigava comida cozida. Tinham-lhe aberto o estômago e roubado a parte que correspondia aos fritos e aos grelhados por isso a minha avó tinha desaprendido a cozinhar. De tal maneira lhe esvaziaram o buxo que se faleceu antes que ficasse sem nada. Convenceram-no a voltar para trás, o que não foi difícil porque certamente o meu avô já teria percebido que a minha avó não ía ao lado dele. Assim, desfaleceu-se para os braços dela.

A seguir ao almoço, fumava meio cigarro e guardava a outra metade num cinzeiro feito de uma lata de atum Bom Petisco para fumar quando acordasse da sesta, era umas maneira de se lembrar que ainda tinha uma segunda metade da vida para consumir. Eu detestava a sesta, sempre fui do contra! Para quê deitar-me quando me fervilhavam as veias de genica? Ficava de braços cruzados no peito e de beiço amuado a olhar para o tecto do quarto à espera que a minha mãe gritasse lá dos fundos: “Já podes!” - como quando tenho o termómetro da febre debaixo do sovaco e impaciente pergunto:”Já posso tirar?” E depois nem com um livro, porque mesmo sem sono tinha de fingir que dormia para enganar a digestão. Nessas alturas punha-me a visualizar onde dormiria a sombra do meu avô. Será que dormiria ao lado dele? A minha escondia-se sempre nalgum canto do quarto, desconfiava eu ou ficava no jardim a brincar às escondidas com as sombras dos gatos. O que é certo é que tem o condão de desaparecer da minha vista quando a procuro e a do meu avô lá anda agarrada a ele qual marioneta, umas vezes deitada no chão, outras vezes encostada às paredes ziguezagueando. O meu avô é-lhe obediente e fiel. Nunca soube se era o meu avô que precedia a sombra ou se era a sombra que andava atrás dele. A certas horas alongava-se ameaçadora, pelo menos aos meus olhos, três vezes o tamanho do meu avô, capaz de o sufocar num abraço de cobra de clima choroso. Eu sustinha a respiração a espreitar numa esquina. Outras vezes, era tão pequenina e etérea que me convencia de que se tinha finado ou então o que o sol não tinha amanhecido. Então apontava para ela enquanto tocava no braço do meu avô para lhe puxar a atenção:


_ Assim não há Ali Babá que resista, avô!


Mas afinal apenas dançavam os dois a música da vida, dança que cria o futuro mas eu ainda era muito pequena para saber essas coisas.

Fragrâncias de flores, lagartixas ao sol, abelhas atarefadas a zumbirem pólen, gatos a lamberem meticulosamente o pêlo, o jardim parecia-me mais atractivo a seguir à sesta. Gosto de rebolar na relva a ouvir os pássaros e de evitar os gafanhotos; de tocar com uma palhinha as costas das aranhas que estremecem penduradas nas teias. O meu jardim é um dos meus tesouros numa caverna cheia de sol. O jardim do meu avô fica mesmo ao lado do meu. É um jardim ordenado em canteiros a lembrar “Versalles” só que em ponto pequeno, arruamentos com calçada portuguesa e um espaço reservado às árvores de fruto. Tem uma estufa para plantas bebés, uma mesa de pedra para sardinhadas com nomes de “santos” e uma cisterna cheia de água da chuva. Às vezes o meu avô deixa-me espreitar para dentro dela por um buraco que destapa com cuidado pondo-me a mão no ombro. Eu olhava por um rectângulo de água preta que imaginava cheia de cobras e rãs e gostava de gritar lá para dentro para ouvir o eco. A água preta da cisterna seria a sombra de uma piscina? Talvez! É que se o meu avô tirasse a tampa de cimento da cisterna, eu poderia dar uma alegres braçadas numa piscina com água a reflectir o azul do céu. Assim, só servia para regar canteiros, o que não era nada divertido, no meu ponto de vista. Era um momento breve que ele tapava logo a seguir deixando cair a tampa de ferro com um som cavo. Pong! Quando ele regava os canteiros de mangueira em punho, eu espera ver cair num jorro as cobras e as rãs. Desejava mesmo que isso acontecesse, para poder ver o meu avô perder a compostura. Mas eram bichos certamente cegos de escuridão, arredios de aventuras que nunca encontravam a saída; ficavam encerrados no seu mundo escuro, dependentes da água da chuva. Nunca me tinha ocorrido que a chuva fosse tão importante:

_ Avô – chamei perguntando – porque é que gastas tanta água da cisterna a regar?

_ Porque se assim não for, as plantas morrem de sede!

Caramba, fiquei impressionada, se ele não regar morrem as plantas, se ele regar e não chover, morrem as rãs e as cobras. Em que momento é que decidiu que as plantas são mais importantes do que as rãs e as cobras? Do choro das nuvens dependem a vida das rãs e das cobras na cisterna e as plantas do jardim. Olhei para o céu e as nuvens sorriam-me branquinhas ensombrando os meus pensamentos. Pensei: “Olha...tenho uma sombra dentro da minha cabeça que é feita pelas nuvens”! Olhei de seguida para o chão, por cima do meu ombro e lá estava a minha sombra nítida colada a mim sem eu lhe ter pedido nada. Só espero que ela não se ponha a crescer, agora que começou a interessar-se por mim. Sempre estou curiosa para ver se me acompanha nas próximas sestas ou se mais uma vez me deixará sozinha.

Estava tudo muito sossegado à minha volta. O atelier do meu avô tinha uma porta sempre aberta para o jardim e que por isso parecia que o tinha emoldurado. Havia bancadas com ferramentas para tudo fazer, da carpintaria à serralharia. Mas o que mais me interessava eram os pigmentos das tintas de óleo que ele próprio fazia, os tentos de espumas com umas camurças muito macias atadas com cordéis às pontas em paus de vários tamanhos, as paletas de madeira penduradas na parede e por último o mais cobiçado por mim: os pincéis de pêlo de marta que o meu avô estimava e guardava numa caixa de madeira feita por ele.

O meu avô nesse momento, concentrava-se em montar uma serra mecânica para cortar pedras. E eu assistia convencida que fazia parte da acção. Quando ele acabasse, talvez me deixasse cortar sozinha um pedacinho de mármore, aquela pedra que parece pele com veias a ver-se à transparência. O meu avô atarefava-se à volta da máquina e passadas umas duas estóicas horas, ambos estávamos desejosos de carregar no botão que ele acabara de montar e verificar se a máquina funcionaria. Chegou finalmente o momento da verdade! O meu avô mandou afastar-me uns passos para trás e colocou os óculos de pesca submarina para proteger os olhos e ficou com uns cabelitos engraxados espetados na nuca, olhou para mim como que a esboçar um “deseja-me sorte” e carregou no botão. Vvviiiimmm! Eu olhava fascinada para a roda dentada a partir pedra. O meu avô desligou a máquina e disse-me:

_Anda cá! Dá cá a tua mão.

Agarrou na minha mão direita e levou-a até tocar na roda dentada. Fiquei com os dedos sujos de um pó branco:

_Está quente!

_Claro que está! Não é fácil desbravar uma pedra.

_E porque é que fiquei com os dedos sujos de pó, avô?

_É para que te lembres de que tudo o que é duro, tudo o que é forte também um dia se tornará pó.

Não percebi nada mas será que isto que ele me disse é mais importante do que a água da chuva?

Percebi que o meu avô estava todo contente por ter conseguido pôr a máquina a trabalhar. Os seus gestos eram vivos ao apalparem os bolsos do casaco e das calças à procura dos cigarros. Acendeu um e fumou-o inteiro à porta do atelier, deitando o fumo para o jardim, esquecendo-se de que ainda tinha os óculos de pesca submarina postos. Foi a primeira vez que vi o meu avô a fumar um cigarro inteiro. Fumou-o como se fosse um prémio que desse a si mesmo. Ele devia estar muito contente.

Do meu jardim, ouvi a voz da minha mãe a chamar-me.

O meu avô desviou-se para eu passar pela porta e sair do atelier e retirou os óculos de pesca submarina para o alto da cabeça dizendo-me:

_Amanhã de manhã vamos construir um papagaio e ele vai voar alto. Queres?

_Quero pois! - e gritei: “Vou já, mãe”.

Virei-me para o meu avô novamente e perguntei-lhe à cautela:

_Podemos pintá-lo? Podemos usar os pincéis do avô?

Ele não me respondeu mas fez um sorriso misterioso. Então estiquei-lhe a minha mão direita solene como vejo fazerem as pessoas crescidas para selar esta promessa. Olhei para o chão e reparei que a minha sombra apertava a mão à sombra do meu avô.

Desatei a correr aos pulos de contente:

_Mãe...mãe, amanhã eu e o avô vamos fazer um papagaio. Os papagaios sabem falar, não sabem?

_Bem...os papagaios verdadeiros aprendem a falar – respondeu a minha mãe.

Olhei para o céu que se coloria de vermelho com nuvens rosadas e pensei:”Vou pedir ao papagaio para avisar as nuvens de que nunca se esqueçam de chover!”


                                                                     FIM



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